O Senhor da Murtosa

É só na década de 1740 que aparece pela primeira vez o nome daquele que iria tornar-se um dos grandes do Lugar Murtosa, com propriedades que iam de Agoncida e Aguincheiro até Proselha, passando pelas Presas e pela Murtosa

Nasceu em Milheirós de Poiares, em 1704, aquele que viria a tornar-se, na realidade, o grande senhor da Murtosa. Para além da propriedade da Capela de Nossa Senhora do Carmo, Salvador Gomes de Carvalho, de seu nome, tornar-se-ia proprietário de um grande número de bens que lhe são deixados ou doados em vários testamentos ao longo do século XVIII.

Nas Memórias paroquiais de 1758, elaboradas pelo Padre Joaquim Henriques, o pároco da freguesia de Mosteirô refere-se a Salvador de Carvalho, dizendo que existe “uma capela no Lugar da Murtosa com título de Nossa Senhora do Carmo que mandaram fazer dois moradores do dito lugar os quais já faleceram e, de presente, estão senhores desta o Capitão Manuel Marques Ferreira e Salvador de Carvalho, ambos homens do lugar”.

Tal como o capitão Marques Ferreira, de Fornos, Salvador de Carvalho não tinha nascido em Mosteirô. Era natural de Milheirós de Poiares, onde nasceu a 21 de Maio de 1704, e filho de António Leite Gomes e Sebastiana de Pinho. O seu registo de nascimento começa por dizer que é filho de Salvador de Carvalho, corrigindo de seguida o nome do pai, especulando-se como posteriormente surge com o apelido de Carvalho.

O casamento com Florência

Terá sido por altura do seu casamento que Salvador adoptaria o apelido de Carvalho. Com efeito, o registo de casamento, datado de 4 de Setembro de 1748, reza que Florência Maria da Silva Carvalho Reis, de 21 anos, se casa com Salvador de Carvalho, de 44 anos, e, em registo posteriores, já aparece com o nome de Salvador Gomes de Carvalho. É possível que existissem laços familiares entre o pai, António Leite Gomes, e os Gomes da Murtosa, mas não foi possível confirmar tal parentesco, uma vez que os pais eram de Milheirós de Poiares.

Foi um casamento com pompa e circunstância, realizado na Igreja de Mosteirô, e presidido pelo tio de Florência Maria da Silva Reis, reverendo padre Manuel da Silva Grilo, prior do bispado de Coimbra. Florência era filha da irmã mais nova do padre Manuel, Josefa Teresa de Jesus e Silva Reis e do Licenciado Constantino de Carvalho Pereira, natural da freguesia de Carregosa, e era irmã do Professo da Ordem de Cristo, Manuel José de Carvalho Pereira Grilo.

Assistiram ao evento numerosos convidados tanto de Mosteirô como de Milheirós de Poiares e de Carregosa, e como testemunhas aparece o nome do capitão Manuel Marques Ferreira, tio de Florência, e o alferes Estêvão Gomes Correia, entretanto promovido a capitão, senhor da Quinta da Murtosa, tudo com a supervisão do pároco da freguesia Bento Gomes Brandão.

O primeiro dote recebido de Bartolomeu Gomes

Poucos meses depois do casamento, morre o tio-avô de Florência, Bartolomeu Gomes, a 7 de Março de 1749, tendo deixado uma escritura de dotes de todos os seus bens em favor de “seu sobrinho Salvador Gomes de Carvalho com a obrigação de casar com a sua sobrinha Florência” e nessa escritura “lhe impôs a obrigação de lhe mandar fazer seus ofícios conforme se fizeram às mais pessoas da casa já falecidas, com as suas ofertas costumadas” de 200 reis de pão e de vinho, “e de mandar dizer 10 missas por sua alma em altar privilegiado por uma só vez, e de pagar os nove alqueires de trigo que é costume pagar-se nesta freguesia por cada cabeceira que faleça. Teria de idade 95 anos pouco mais ou menos”, diz o cura Bento Gomes Brandão.

Na realidade, o irmão da avó de Florência, Bartolomeu Gomes, sendo já bastante idoso, quando faleceu tinha 86 anos de idade, uma vez que tinha nascido a 18 de Agosto de 1662, no Lugar da Murtosa, filho do patriarca da família André Gomes e de Maria Fernandes. Naquela época, não era costume ir à procura do registo de nascimento da pessoa, até porque seria difícil, e a terminologia existente dizia sempre que “teria pouco mais ou menos” um certo número de anos.

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Nicolau Gomes, amortalhado no hábito de Nossa Senhora do Carmo

A devoção da família Gomes a Nossa Senhora do Carmo, da Capela da Murtosa, fica bem patente no registo do falecimento de Nicolau Gomes. O testamento deixado por este membro da família Gomes, que morre solteiro, foi recolhido pelo então padre Joaquim Henriques e comprovado pelo escrivão da Vila da Feira, Luís Teixeira de Melo.

Nele são especificadas as suas últimas vontades, sendo explicitamente vincado que queria que “o seu corpo fosse amortalhado em um hábito de Nossa Senhora do Carmo”, diz o padre Joaquim Henriques, acrescentando ainda:
“que o acompanhamento para a sua sepultura e mais sufrágios e bens da sua alma fossem feitos na forma que se fizeram a seus irmãos e era costume da casa; e lhe mandasse dizer logo por uma só vez 50 missas em altar privilegiado e para satisfação de tudo isto e demais encargos deixava por seus herdeiros universais a Florência da Silva Reis e a seu marido Salvador de Carvalho, seus sobrinhos, de que os fazia seus testamenteiros universais”.

Diz o padre Joaquim Henriques que Salvador de Carvalho tratou da quitação do pagamento de todos os encargos respeitantes ao testamento de Nicolau Gomes, tio-avô de Florência Maria da Silva Carvalho Reis. Quando este morre a 7 de Setembro de 1754, deixa todos os seus bens aos seus sobrinhos, nomeadamente os bens que ele próprio tinha herdado do seu pai André Gomes, nomeadamente as casas dos Coelhos e as terras adjacentes, mas também a parte dos bens que o seu irmão Capitão Manuel Gomes lhe tinha deixado, e que incluía a Capela da Murtosa.

A herança deixada por Florência

Infelizmente, Florência não chegou a usufruir dos bens que o tio-avô Nicolau Gomes lhe tinha deixado nem tão-pouco do dote que o tio-avô Bartolomeu Gomes tinha oferecido aquando do seu casamento com Salvador Gomes de Carvalho.

Pouco mais de um mês depois da morte do tio-avô, regista o padre Joaquim Henriques o seu falecimento:
“Aos 27 dias do mês de Outubro de mil setecentos e cinquenta e quatro anos faleceu da vida presente Florência Maria da Silva Reis mulher de Salvador de Carvalho do Lugar da Murtosa desta freguesia de Santo André de Mosteirô com todos os sacramentos; teria de idade vinte e seis anos pouco mais ou menos, foi sepultada de tarde dentro desta igreja sem testamento. Salvador de Carvalho seu marido lhe mandou fazer os três ofícios gerais e teve acompanhamento de sete padre-nossos de tarde.”

Assim, em pouco mais de um mês, Salvador herda os bens do tio-avô de Florência, Nicolau Gomes, bem como todos os bens da própria mulher que já lhe tinham deixado os seus avós, Isabel Gomes e Capitão Manuel da Silva Grilo, e o seu tio-avô Bartolomeu Gomes.

O nascimento dos filhos de Florência e Salvador, um grande acontecimento

Quando morre em 1754, Florência deixa dois filhos menores, Maria de apenas cinco anos e Manuel de dois anos. O seu nascimento tinha sido motivo de regozijo e uma ocasião de celebração muito especial para toda a família Gomes, da Murtosa.

A 2 de Novembro de 1749, nasce no Lugar da Murtosa, Maria, a primeira descendente de Florência e Salvador. Não se sabe porquê, mas tratou-se de um grande evento da época. Assim, propositadamente, o tio de Florência, denominado no registo como Reverendo Doutor Manuel da Silva Grilo, tinha-se deslocado de Coimbra para ser ele próprio a baptizar a sua sobrinha, tal a importância que era dada ao acontecimento. Teve como testemunhas altas individualidades da região, nomeadamente o capitão Manuel Marques Ferreira, seu tio, e o Capitão Estêvão Gomes Correia, da Quinta Murtosa.

Os padrinhos foram escolhidos um de cada ramo da família, nomeadamente o reverendo padre António Leite Gomes, possivelmente tio da recém-nascida, que se deslocou para este efeito de Milheirós de Poiares, terra natal de Salvador de Carvalho, pai da criança, e Susana Gomes, da Murtosa, por sua vez tia de Florência.

A relevância do acontecimento é facilmente verificável pela importância dos padrinhos e das testemunhas, sobretudo quando comparada com outros registos da época, onde muitas vezes só aparece o nome do pai e dos padrinhos. É fácil encontrar registos onde se pode ler “filho de fulano de tal e de sua mulher”, sem identificar o seu nome.

Já o nascimento de Manuel, a 5 de Janeiro de 1752, o qual mais tarde irá aparecer com o nome de Manuel José Leite Pereira de Carvalho da Silva Coelho, terá sido igualmente uma ocasião festiva e um grande acontecimento social, segundo a descrição do padre Bartolomeu Gomes Brandão, cura da paróquia de Mosteirô.

As heranças de Susana Gomes e de Maria Gomes

A três de Dezembro de 1752, o cura encomendado João Saraiva Valente dá conta do falecimento de uma tia-avó de Florência, Susana Gomes, solteira de 78 anos de idade, pouco mais ou menos. Curiosamente, Susana tinha nascido a quatro de Dezembro de 1678 pelo que teria 74 anos de idade.

Mas isso pouco importa para o caso. O cura regista que Susana “teve três ofícios por sua alma, de número de 20 padre-nossos cada um, e os mesmos de acompanhamento, além de vários que vieram mais, e não fez disposição alguma na hora da sua morte, nem consta que antes tivesse feito, o que tudo já tinha seu sobrinho Salvador de Carvalho e foi sepultada dentro da Igreja.”

Naturalmente, Susana teria tido pelo menos uma parte da herança dos pais e do seu irmão Capitão Manuel Gomes, o qual tinha explicitamente deixado todos os seus bens, a 7 de Março de 1735, a todos os seus irmãos e irmãs e ao seu cunhado Capitão Manuel da Silva Grilo.

Já relativamente a Maria Gomes, existe a referência ao seu testamento no registo do seu óbito realizado pelo cura da paróquia de Mosteirô, o padre Joaquim Henriques, em 12 de Dezembro de 1781 e conta o seguinte:

“Maria Gomes, solteira, assistente em casa de Salvador de Carvalho, do Lugar da Murtosa desta freguesia de Mosteirô, faleceu da vida presente (…) com todos os sacramentos e teria de idade setenta anos, pouco mais ou menos. Tinha feito o seu testamento com que deixava seu universal herdeiro o dito Salvador de Carvalho, encomendando nele lhe tratasse o seu cadáver e alma, da mesma sorte e com a caridade com que sempre a tinha tratado em vida, e o mesmo Salvador lhe mandou fazer seu acompanhamento com ofício de corpo presente de seis padre-nossos.”

O falecimento do senhor da Murtosa

Quando morre em 18 de Agosto de 1785, na sua casa da Murtosa, Salvador Gomes de Carvalho era um dos homens mais poderosos de Mosteirô, principal herdeiro dos bens da família Gomes. Tinha acumulado um conjunto de heranças que incluíam a Capela da Murtosa, as casas em frente da capela, e as terras que iam de Agoncida até Proselha.

As duas mais importantes famílias da Murtosa, a família de Isabel Gomes e do Capitão Manuel da Silva Grilo, da Casa dos Coelhos, hoje Casa do Ratão, e a família do Capitão Estêvão Gomes Correia, da Casa da Murtosa, hoje Quinta Sousa Brandão, tinham propriedades que se estendiam do Aguincheiro e Agoncida, pelas Presas abaixo, passando pela Murtosa, e iam até Proselha e ao Fundo de Mosteirô.

A importância de alguém é sempre uma apreciação relativa. Para os seus familiares, era tão importante a morte de Custódio Francisco, mudo, do Lugar da Quintã, que em 1794, aos 30 anos de idade, “morreu repentinamente ao cair abaixo de um carro de tojo”, como foi certamente a morte de Salvador de Carvalho para os seus filhos.

O padre Joaquim Henriques regista o falecimento do senhor da Murtosa do seguinte modo:
“Salvador de Carvalho, viúvo, do Lugar da Murtosa desta freguesia de Santo André de Mosteirô comarca da Feira e bispado do Porto; faleceu da vida presente, de repente, que nem deu tempo de se sacramentar, só por se achar presente o padre Manuel Leite da freguesia de Milheirós de Poiares o absolveu e logo faleceu sem ter feito disposição alguma, teria de idade oitenta anos pouco mais ou menos. Seu filho Manuel José Leite de Carvalho Coelho ficou herdeiro com obrigações aos seus bens da alma, e faleceu aos dezoito dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e cinco anos. Teve ofício de corpo presente de 75 padre-nossos e acompanhamento da maior parte desses.”

História Cronológica da família Gomes, da Casa dos Coelhos, da Murtosa

  • 24 de Julho de 1618, casamento dos avós de Mosteirô de Isabel Gomes, André Rodrigues e Maria Antónia Gomes
  • 11 de Abril de 1627, nasce André Gomes, pai de Isabel Gomes
  • 7 de Agosto de 1653, casamento de André Gomes com Maria Fernandes, de Cesár
  • 12 de Dezembro de 1658, nasce Manuel Gomes, que irá atingir o posto de capitão
  • 18 de Agosto de 1662, nasce Bartolomeu Gomes
  • 18 de Fevereiro de 1666, nasce Isabel Gomes, futura mulher do capitão Grilo
  • 15 de Março de 1669, nasce Domingos Gomes, que seria padre mais tarde
  • 1675, é construída a Casa dos Coelhos, que sofre remodelações e aumentos ao longo dos séculos, e hoje é conhecida como Casa do Ratão
  • 1677, é construída a mina de água até junto da pedreira da Etiópia, e a Fonte do Ratão que irá servir para abastecer as casas e alambique
  • 4 de Dezembro de 1678, nasce Susana Gomes
  • 27 de Abril de 1693, morre o patriarca da família Gomes, André Gomes, com 66 anos de idade
  • 31 de Agosto de 1698, casamento de Isabel Gomes com o capitão Manuel da Silva Grilo
  • 12 de Fevereiro de 1701, nasce Josefa Teresa de Jesus e Silva, filha de Isabel Gomes e do Capitão Manuel da Silva Grilo
  • 21 de Maio de 1704, nasce Salvador Gomes de Carvalho, em Milheirós de Poiares
  • 14 de Maio de 1725, casamento da filha de Isabel Gomes e do Capitão Manuel da Silva Grilo, Josefa Teresa de Jesus e Silva com o Licenciado Constantino de Carvalho Pereira, de Carregosa
  • 14 de Julho de 1727, nasce em Carregosa Florência Maria da Silva Carvalho Reis, filha de Josefa Teresa de Jesus e Silva e do Licenciado Constantino de Carvalho Pereira
  • 20 de Fevereiro de 1729, nasce em Carregosa Manuel José de Carvalho Pereira Grilo, mais tarde Professo da Ordem de Cristo, filho de Josefa Teresa de Jesus e Silva e do Licenciado Constantino de Carvalho Pereira
  • 7 de Março de 1735, morre o capitão Manuel Gomes, tio e padrinho de Florência, e deixa os seus bens aos irmãos e ao cunhado capitão Manuel Grilo
  • 9 de Abril de 1735, morre Isabel Gomes, avó de Florência, deixa os seus bens ao marido Capitão Grilo
  • 19 de Julho de 1738, morre o Capitão Manuel da Silva Grilo, avô de Florência, e faz escritura em que deixa os seus bens aos seus filhos e genro Capitão Manuel Marques Ferreira
  • 19 de Novembro de 1738, nasce em Carregosa José Manuel da Silva Pereira, filho de Josefa Teresa de Jesus e Silva e do Licenciado Constantino de Carvalho Pereira
  • 4 de Setembro de 1748, casamento em Mosteirô de Florência Maria da Silva Carvalho Reis, de 21 anos, com Salvador Gomes de Carvalho, de 44 anos
  • 7 de Março de 1749, morre Bartolomeu Gomes, tio de Isabel Gomes, tendo feito escritura de dote dos seus bens a Salvador Gomes de Carvalho com obrigação de casar com a sua sobrinha Florência
  • 2 de Novembro de 1749, nasce a primeira filha, Maria, de Florência Maria da Silva Carvalho Reis e Salvador Gomes de Carvalho
  • 5 de Janeiro de 1752, nasce o filho de Salvador Gomes de Carvalho e de Florência Maria da Silva Carvalho Reis, a quem é dado o nome de Manuel José Leite Pereira de Carvalho da Silva Coelho
  • 3 de Dezembro de 1752, morre Susana Gomes
  • 7 de Setembro de 1754, morre Nicolau Gomes e deixa os seus bens à sobrinha Florência
  • 27 de Outubro de 1754, morre Florência Maria da Silva Carvalho Reis e deixa os bens ao marido Salvador de Carvalho
  • 12 de Dezembro de 1781, morre Maria Gomes, deixando herdeiro universal Salvador de Carvalho
  • 18 de Agosto de 1785, morre Salvador de Carvalho, deixando ao seu filho, Manuel José Leite Pereira de Carvalho da Silva Coelho, todos os seus bens e a incumbência de cuidar pela sua alma, com uma missa de corpo presente e 75 padre-nossos

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Autor: mosteirofeira

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